Rafa e o vocabulário único do Lasai
Compartilhe:
- Tweet
Sempre andei cabreiro com essa história de ovo perfeito, por achar que o próprio já vem perfeito ao mundo – basta uma frigideira e um pouco de manteiga. Mas desisti do ponto de vista no Lasai. Abraçada por tiras de pupunha e queijo curado, a gema veio em consistência cremosa de doce português – pense em ovos moles de Aveiro -, de profunda cor laranja e causando arrepios (de prazer) à primeira garfada.
A técnica aponta 63°C em 45 minutos de ‘sous vide’, mas não é exatamente o manual que leva a culpa pela divindade. Porque isso ninguém me contou e vi com os próprios olhos, em matéria que fiz para a revista Gula sobre as duas hortas orgânicas que o chef Rafa Costa e Silva mantém para o restaurante: as galinhas soltas e felizes, sassaricando no cercado e bicando um molho de hortaliças recém-colhidas.
Deu para entender o ovo do Lasai? Pescou a gênese de um dos restaurantes brasileiros mais visitados pelos grandes chefs do mundo?
Abóbora e castanha de caju. Tempura de acelga. Cenoura, ricota e laranja
Ver o Rafa passeando e provando na terra seus vegetais, enquanto pensa nos menus que mudam a cada dia, é uma experiência que aprofunda a sensibilidade para a compreensão de um vocabulário único, de um projeto inédito e ousado de restauração. A ponto de me encontrar diante de um lindo trecho de sobrepaleta suína, banhada em molho próprio e untuoso, e elogiar o brócolis que nela se recostava – e até agora não sei quem era na louça o protagonista.
Com cerca de 14 pratos (“elaborações”, como define o chef), os menus do Lasai são 80% vegetarianos. Os peixes, de pesca de linha artesanal, ou arpão no mergulho, chegam quase vivos ao restaurante, os queijos são garimpados entre bons produtores brasileiros, e carnes variadas são curadas na casa. A carta de vinhos igualmente se destaca e traz algumas pérolas brasileiras ‘naturais’ e de pequena produção, aos cuidados da excelente sommelier Maíra Freire.
Eleito em 2018 (mais uma vez) o Chef do Ano pela Veja Rio, Rafa figura com o Lasai na 16º posição entre os 50 melhores restaurantes da América Latina, na lista do World’s 50 Best, onde aparece entre os 100 melhores do mundo.
Espinafre, quiabo e pinhão. Milho e queijo. Empadinha de cogumelos
Na entrevista abaixo, o chef explica seu processo de criação. Diz que a padronização não lhe interessa e que nunca anotou uma receita. Conta que vem aprimorando o intercâmbio com pequenos produtores das feiras orgânicas do Rio, e se assume como embaixador da gastronomia na cidade, ao receber cozinheiros do mundo inteiro para jantares especiais (veja ao final a lista de quem já está programado para 2018). Melhor lugar do mundo para se comer? O México, de preferência em certa barraca de rua onde o cozinheiro se farta de tacos de cérebro, estômago e tripas de porco.
Boca no Mundo – Quantos vegetais estão plantados hoje na suas duas hortas e o que se destaca na temporada fria, servindo ao restaurante?
Rafa Costa e Silva – Hoje estamos com quase 20 variedades plantadas. A ideia da horta é colher coisas que não encontramos nas feiras orgânicas. Há produtos como a jícama e o tupinambo. O inverno não é bom para hortaliças, mas temos coisas como kale, uma espécie de couve frisada, dente de leão e vagens diferentes, amarelas e roxas. Também tomatillo, pepinos e melões. Passei essas sementes para produtores do circuito de feiras orgânicas, que já estão plantando para que mais pessoas tenham acesso. Fazemos um intercâmbio.
BM – De que maneira ocorre o processo de composição dos pratos e menus do Lasai, que às vezes mudam de um dia para o outro?
RCS – Nossos pratos são uma coletânea de produtos excepcionais de nossas hortas e da feira orgânica, que a gente tenta cozinhar da melhor maneira possível. Vamos uma vez por semana à horta, vemos o que há disponível e improvisamos. Testamos de dia e, se funcionar, servimos à noite. Nosso restaurante está dentro de uma bolha e somos privilegiados nesse sentido. Não me importo que o caldo de peixe saia hoje diferente, desde que eu prove e esteja bom. Quero que o cliente venha e diga que o caldo está muito bom, e depois volte outro dia e fale: caramba, é diferente do outro e também é muito bom.
Jícama, chuchu, peixe
BM – E não há receitas anotadas, um inventário dos pratos criados e servidos ao longo o tempo? Você tem ideia de quantos pratos diferentes serve a cada mês?
RCS – A pior coisa que as pessoas podem me pedir é receita, porque tenho que escrever. Sempre falo que deveríamos registrar tudo, mas nunca fizemos. Quando quero lembrar de algum prato, procuro no Instagram. É uma falha nossa. Difícil responder sobre a quantidade, mas todo dia mudamos algum detalhe no menu, a troca de algum produto, ou ideia. Então temos mais de 300 apresentações diferentes por ano.
Vinha Unna Lívre Arbítrio – Moscato Antigo
BM – O Lasai foi inspirado no espanhol Mugaritz, considerado um dos melhores restaurantes do mundo, onde você trabalhou por muito tempo?
RCS – Minha maior escola e inspiração foi o Mugaritz. Saí de lá há seis anos, eles mudaram muito e a gente aqui também. Mas não dá para comparar um restaurante como eles, de 20 anos, com mais de 40 pessoas na cozinha e uma equipe de criação. Somos muito jovens, apenas quatro anos, e somos nove na cozinha, contando comigo. Gostaria de chegar um dia ao nível do Mugaritz, mas ainda falta muito e não tenho pressa. Amadurecemos em nosso tempo. O momento agora é de ser meio ‘freestyle’, descobrindo e testando bons produtos.
Batata doce, bok choy, burrata
BM – Você tem recebido na sua cozinha estrelas internacionais do primeiro time, como Gaggan Anand e Ana Ros, e consolidado um circuito inédito de grandes chefs na cidade. O que essas visitas trazem de melhor para o Lasai? Você se sente um embaixador na gastronomia carioca?
RCS – Convidar os chefs é uma forma de trazer pessoas para que eu e a equipe possamos ver coisas diferentes, saber que há outras maneiras de fazer as coisas. É maravilhoso ver pessoas que eu nunca esperaria receber no restaurante, ainda mais cozinhando. Sempre falo para minha equipe, que é muito jovem, que todos deveriam morar e trabalhar fora do país para ver outras coisas, como eu fiz. Me sinto um pouco embaixador, sim. É uma pena que o apoio dos governos no Brasil é zero, como essa prefeitura patética. Tínhamos um projeto maravilhoso, trazer um dos maiores eventos de gastronomia do mundo, contrato assinado, custo baixo, retorno imenso à cidade, e ninguém apoiou.
Peixe, tupinambo, couve flor
BM – Você comentava comigo, durante o jantar, que acha a cozinha mexicana melhor do que a peruana, que detém tantos prêmios e é incensada como uma das melhores do mundo. Por que essa predileção?
RCS – Acho a cozinha mexicana muito mais rica, saborosa e diversificada que a peruana. Para mim as duas melhores do mundo são a mexicana e a japonesa. Uma mais clássica e direta, poucos condimentos, que é a japonesa e outra cheia de condimentos, pimentas, especiarias.
BM – Você é um apaixonado por comida de rua, pelas expressão das diversas culturas e identidades locais. Há algo que tenha comido e se impressionado pelo mundo?
RCS – Não há comida de rua igual à mexicana. Na Cidade do México há uma tenda chamada Los Cocuyos, e eles fazem tacos de várias partes do porco. Cérebro, língua, tripa, estômago, isso é maravilhoso. Foi provavelmente a melhor comida de rua da minha vida. Posso comer 25 desses, é impressionante. Você paga tipo 50 centavos de dólar por dois tacos. Também teve um sanduíche de pernil na Bolívia que marcou. Era uma senhorinha sentada num banquinho, fazendo apenas isso. Um pão francês normal e o pernil com a pele crocante. Para acompanhar, uma cebola curada com vinagre, pimenta, coentro e está pronto. Maravilhoso, me surpreendeu. Tentei fazer Lasai, mas como lá não tem igual.
Porco, brócolis, acelga
BM – E no Brasil?
RCS – É uma pena que aqui as pessoas não deixem acontecer, a legislação bloqueia muito. Poderíamos ter coisas maravilhosas, mas nunca comi nada que me marcou. Food truck que tem que ficar em estacionamento, isso é ridículo, só no Brasil. O que mais gosto aqui, nas feiras, é o pastel e a tapioca.
BM – Restaurantes que trabalham com ótimos produtos artesanais, como o seu, também sofrem com a legislação brasileira engessada. O caso recente da Roberta Sudbrack, no Rock in Rio, deixou a questão em evidência. O que os chefs podem fazer para melhorar o cenário?
RCS – Acho que a forma mais fácil seria conseguir eleger pessoas, ter um representante, um porta-voz no Legislativo. Já fizemos movimento nesse sentido com o SindRio. O caminho que tomo é mesmo peitar a lei, não tenho o que fazer. Continuo assumindo os riscos. As pessoas inteligentes sabem discernir o certo do errado. Quando eles vêm aqui e me falam que tenho um jamón ilegal, um queijo ilegal, eu falo que é isso mesmo. Aí me multam, me colocam na manchete do jornal, que está esperando para escrever.
Era dos Ventos Merlot 2015
BM – Como foi que isso aconteceu?
RCS – Entraram aqui às seis horas da tarde, jogaram fora meus queijos e às duas da manhã já estavam no jornal online dizendo que tinham pego não sei quantos quilos impróprios para consumo no Lasai. A lei é estúpida, mas eles estão cumprindo, eu entendo. Se conseguirem sair no jornal é melhor ainda, porque já se candidatam no ano que vem. Nesse dia foi assim, a uma hora da manhã a Cidinha Campos, presidente do Procom, estava dando entrevista falando que tinha alimento impróprio no Lasai. É a deputada mais votada do Rio. É um ciclo que não acaba.
BM – Como o Lasai está lidando com uma crise econômica que atinge o setor de forma poderosa, do botequim pé-sujo à alta gastronomia?
RCS – A crise é complexa e já vivemos ela há muito tempo. Nosso restaurante não é mesmo para todo mundo, infelizmente. O que mais me afeta é que os turistas não estão vindo. Ano passado, 45% do nossos clientes eram turistas de fora do Brasil. Mas só escutam coisas ruins e ninguém vem. Estávamos sempre lotados, agora já não acontece mais. Temos que aguentar e persistir para vencer. Na verdade, não podemos reclamar muito, porque somos privilegiados. Comparados com restaurantes do mesmo preço na cidade, estamos indo bem.
BM – Qual é o caminho para fechar as contas no lucro, numa operação diária dispendiosa como a do Lasai?
RCS – Fechamos as contas com muito trabalho, estou aqui todos os dias e meto a mão na massa. Quando você trabalha no próprio negócio, para te substituir precisa de cinco, porque você dá toda a sua força. E e tenho uma equipe fenomenal. São nove pessoas na cozinha, e hoje vamos atender 40 pessoas. Cada uma, em média, vai comer 14 elaborações, imagina quantos pratos, pelo menos 600 feitos por nós. Os garotos e as garotas são demais, correm muito atrás, todos se desdobram e fazem o trabalho de dois. De vez em quando me pergunto por que fazemos isso, há mesmo um pouco de insanidade. Mas é que a paixão e o amor são maiores. Não miramos o lucro agora, ninguém vai ficar rico, mas nunca perdemos dinheiro. Nunca atrasei conta ou pagamento. Nosso projeto é futuro. De grão em grão, sem querer fazer franquia de tudo e abrir a torto e a direito, para ganhar dinheiro. Estamos felizes com o nosso projeto de vida.
Caqui, abóbora, mel
Agenda de chefs confirmados em 2018 no Lasai – jantares especiais a ‘quatro mãos’
Agosto: Helena Rizzo (Maní; São Paulo) e Leonor Espinosa (Leo; Bogotá). Setembro: Matt Lightner & Leo Carreira (Londrino; Londres). Outubro: Carlo Mirarchi (Blanca e Robertas’; Nova York). Novembro: João Rodrigues (Feitoria; Lisboa). Dezembro: Bo Bech (Geist; Copenhague).
Preços dos menus disponíveis no Lasai
O menu Festival traz diversos ‘snacks’ (de comer com a mão), mais duas entradas, dois principais e duas sobremesas, por R$ 345 (sem serviço e bebidas).
O menu Não Me Conte Histórias traz os ‘snacks’ mais uma entrada, um principal e uma sobremesa, por R$ 295 (sem serviço e bebidas)
O Lasai fica na Rua Conde de Irajá 191, em Botafogo, no Rio. Tel.: (21) 3449-1854.