Uma noite no Oro
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O foco no lugar certo, o corte preciso do quadro, a incidência da luz. A fotografia congela momento específico de um fluxo contínuo na evolução criativa do chef. E também do cliente, por que não?
Como em relação à arte, caminhamos todos: quem vê, ou prova; e quem pinta, ou cozinha.
Na reflexão deste prefácio, opino que a prova dos nove, o elemento de peso dois na avaliação de um restaurante está no momento em que a comida cruza a fronteira dos lábios.
É ali que se resolvem longas histórias, os possíveis enredos de cada ingrediente. Sejam feitos no vácuo ou no fogão a lenha.
Maturação
Quando estive pela primeira vez no Oro, logo após a abertura da casa, revelei fora de foco certos fotogramas projetados à mesa sob a fumaça, na trama do casamento entre ingredientes e receitas brasileiras e as técnicas modernistas escolhidas pelo cozinheiro.
Chef de talento acima da média, Felipe Bronze criou sua praia particular na cidade e mergulhou de cabeça, sem medo das ondulações.
Inquieto e determinado, assumiu riscos e a eles convidou quem se propôs a acompanhá-lo. O tempo, no caso, lhe fez bem.
Porque é preciso estudo e critérios bem definidos para ampliar os limites de cada ingrediente e combiná-los.
Inspiração
O fato é que minha resitência a certos processos do que foi chamado de cozinha molecular (os chefs não gostam do termo) vem diminuindo a cada visita ao Oro.
E a cada mordida vejo mais sentido na opção de Felipe pelo que o próprio define como “cozinha brasileira de vanguarda“.
Semana passada, em mesa de bons amigos, degustei durante quase três horas um serviço de 21 itens baseado nas novidades do cardápio. E bati palmas para interpretações precisas e coerentes das viagens do chef pelo mundo, tendo o Rio de Janeiro como porto inspirador.
É hora de abrir um parêntese para Cecília Aldaz. E não há clima algum de Revista Caras ao abordar o casamento do chef com a sommelière, responsável pelo excelente serviço dos vinhos e, por que não, pelas criações de Felipe sob a ótica da harmonização.
É notável a forma descomplicada e criativa com que Cecília — estudando em tempo integral para obter o prestigiadíssimo título de Master of Wine — ampara o repertório de Bronze.
A dupla viaja e pensa em comida dia e noite, se assim desejar. E o restaurante ganha com isso.
Na foto abaixo, bagunça que fizemos para a seção improvisada de fotos.
Intensidade
Começamos a festa no ambiente refrescante produzido com folhas frescas de hortelã sob as compressas de melancia no Jerez, que trocaram lulas da coleção passada pela sardinha marinada, resolvendo a mordida com maior personalidade e dando pistas da evolução no que estava por aterrisar.
Elegendo meus preferidos, ainda na seção de Snacks (as entradas), o Milharal preencheu os galhos das pequenas árvores do Oro com minicones de invólucros que se caramelizam na boca, e recheio de milho doce e macio feito (surpresa…) com Catupiry, enfeitado com raiz de cebolinha e pó de pipoca. Deliciosas pamonhas contemporâneas.
Um peixe em combinação brasileira de perfumes naturais, e um crustáceo em caldo inesperado foram momentos marcantes.
E não cito agora a sequência-no-mesmo-prato entitulada Nós Amamos Porco! porque, como digo volta e meia, porco é covardia. E eu amo porco com dois pontos de exclamação.
Falo primeiro do pirarucu (o ‘bacalhau brasileiro’) feito no sous vide (vácuo), com feijão guandu e picles de quiabo.
Um naco de paladar e textura delicadas sobre a leguminosa de origem indiana e sabor de mato, ou erva. Prato que remete à beira de um rio, com a pontuação delicada dos anéis de quiabo.
Sobre o crustáceo admirado, era um fresco lagostim, aninhado em purê de cenoura e farinha de Cruzeiro do Sul, paraíso do produto no interior do Acre.
Conjunto enfeitado por duas minicenouras crocantes — uma delas ‘osmotizada’ em beterraba, da cor da mesma após técnica de marinada — e finalizado na tigela com caldo escuro de mocotó. Irretocável no bowl de madeira (foto de abertura).
Não há como pular o ‘Bife a Cavalo’, colher de porcelana com gema onde foi injetado caldo de carne, salpicada com a clara cozida e minicroutons (feitos no óleo da pancetta).
Untuoso e concentrado, uma pancada de sabor que deixa gosto de quero mais dois, por favor (segunda foto do post).
Do Japão, onde esteve recentemente pela primeira vez e trouxe na mala produtos e recipientes, o chef criou dupla formada por cone de atum temperado e tataki de carne Wagyu, com ‘telha’ de shoyu lembrando certos snacks nipônicos de peixes e algas secas, na foto acima. Umami em nossas vidas.
(O prato reserva algo mais que não posso contar).
Da leva passada de invenções, pintou lagostim com picles de chuchu, caldo e esferas de taperebá: bolinhas geladas a nitrogênio que decolam na acidez da fruta.
Ao final, a bochecha de boi laqueada em seu próprio caldo escuro, com purê, pó e telha de batata doce, desmanchou na boca em conforto e intensidade.
Homenagem
Alguém falou em porco? O prato que declara amor aos suínos vem nas seguintes mordidas:
1 – Sanduíche de orelha confitada com queijo da Canastra e ketchup de goiaba.
2 – Costelinha na baixa temperatura com espuma de amendoim.
3 – Lombo com shoyu e maçã verde.
4 – Barriga com caramelo de jabuticaba e líquido (em pipeta) de rapadura, gengibre e Jerez.
5 – Torradinha com tomate e lombo de Pata Negra, porco ibérico de bellota da marca Joselito (quem conhece não esquece).
E vale um parágrafo para o maior orgulho do chef, diversas ‘explosões’ crocantes a cada mordida, quase derretendo na boca: o ‘torresmo’ feito com o pó da pele de porco desidratada, salpicado sobre o obulato e frito, com raspas de limão.
A propósito: o obulato é uma espécie de papel transparente e comestível japonês, à base de amido de batata, muito utilizado por lá como invólucro de medicamentos.
Doçuras
As sobremesas do Oro sempre estiveram entre as melhores da cidade, embora eu tivesse em algumas delas certas resistências às técnicas utilizadas.
Não vejo graça, por exemplo, nos sorvetes congelados em nitrogênio. Prefiro os tradicionais. E a mesma coisa senti quando provei brigadeiros líquidos e esferificados. Faltava sabor.
Pois não me lembro de ter visto sorvetes de nitrogênio no novo menu do restaurante, e na coleção de sobremesas servida brilharam — viva! — deliciosos e clássicos brigadeiros feitos com chocolate de primeira linha (e o pessoal perdendo a linha).
E não é que veio um PF para cada um? Algumas dicas do que desconcerta o freguês: a gema é de taperebá, a couve são raspas de limão confitadas, o feijão é de chocolate…
Menção honrosa na série final para maravilhosos triângulos de goiabada com Catupiry, pequenas balas macias que fazem sorrir.
A noite foi de sorrisos, enfim.
Vinhos
As taças ao longo do menu:
Espumante Campolargo Bruto, Frei João Branco Bairrada (Portugal), Langeloiser Riesling (Áustria), Sileni Cellar Selection Pinot Noir (Nova Zelândia), Al Muvedre (Espanha), Vesevo Taurasi (Itália), Coteaux Layon (França), Pedro Ximenez Solera 1927 (Espanha).
Investimento
O Oro só trabalha com menus de degustação. Cinco escolhas a R$ 170; sete a R$ 220; nove a R$ 290; e 21 itens a R$ 395 (somente com reserva). Todas as versões podem ser harmonizadas com vinhos, com acréscimo nos preços.
Oro. Rua Frei Leandro 20, Jardim Botânico (2226-4586). Segunda à quinta, das 19h30 à 0h; sextas e sábados, das 19h30 à 0h30. Aceita todos os cartões.