Siga o coelho, Alice
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Sevilha seja aqui, Barcelona e San Sebastián também. Tudo o que sonhares, todos os lugares. A Espanha de histórias, ingredientes, técnica e paixão.
O desejo pode estar na sardinha marinada em vinagre de vinho branco, descansando em cebola caramelizada no Jerez Pedro Ximenez, sobre o pão torrado. Ou no peito de pato produtor de saliva, com sotaque de escabeche ácido e adorno doce de legumes em textura firme.
São dignos da tela de Almodóvar os Huevos Rotos, feitos com ovos orgânicos do Brejal, batatas fritas e embutidos chistorra e chorizo, mescla de algum deus ibérico.
‘Huevos Rotos’:
E lá vem a costela de porco desfeita em caldo vegetal, que não faz desfeita ‘lacada’ na chapa e deitada em purê de damasco (foto de abertura).
O jamón serrano pede passagem na ‘cazuelita’ onde acompanha favas verdes refogadas em azeite e alho, tudo na boca se desmanchando. Refresco andaluz, o salmorejo deslumbra em tomate, alho, azeite, pão, vinagre e… manga.
Sejamos francos: onde mais pela praça surgiria um menu degustação com língua, rabo e rim bovinos? Pois são todos eles cozidos em vinhos Jerez e segredos próprios.
Siga o coelho, Alice. Aquele preparado em brandy e vinho tinto, de se comer com a colher. E anote: um toque de chocolate finaliza o molho.
Bem-vindos ao Entretapas.
Favas com jamón:
Emoções de Boca
Antes de prosseguir no casarão da Conde de Irajá, me permitam volta rápida no tempo para a realização de um sonho. Foi lendo um livro de Antonhy Bourdain que ouvi falar pela primeira vez dos ‘pintchos’ e tapas de San Sebastián, descritos como experiência transcendental.
Dormi sob o juramento de que viajaria o quanto antes ao País Basco espanhol, aonde fui um ano depois, sozinho, viver emoções de boca inesquecíveis.
Pequenos pratos ou ‘canapés’ de enganadora simplicidade. Os melhores ingredientes em repertório estudado, tradição e evolução de cultura culinária poderosa.
‘Montadito’ de legumes, queijo de cabra e mel:
Fiquei tão entusiasmado com o que provei como assombrado pelo fato de, na época, o Rio não contar sequer com uma tentativa de bar de tapas. O ano era 2008.
Muito mudou, sabemos, e o estilo espanhol anda nas esquinas. Há bares de ótima qualidade, descontraídos e com presença marcante do balcão, sentido que os aproxima até mais dos similares espanhóis.
Mas é na cozinha do Entretapas que nasce a maior homenagem já feita em solo carioca à Espanha gastronômica. É ali que me vejo mais perto dos sabores que me abriram portas no país de Joan Miró.
Visite aqui o Pakta, cozinha de Adrià entre Peru e Japão.
E conheça o Tapas 24, bar de Carles Abellan em Barcelona.
‘Croquetas’ de jamón:
Capricho e Revelação
Embora geralmente enquadrado pela imprensa especializada na categoria ‘bar’, o Entretapas é um restaurante. Um restaurante de tapas. Assim nasceu e se adaptou, na cena carioca, à proposta de qualidade e autenticidade de seus inventores.
Na mistura bem dosada de profissionalismo e paixão, a dupla de sócios formada pelo chef Jan Santos, mineiro de formação madrilenha, e Antonio Alcaraz, espanhol de Murcia, criou ambiente acolhedor e caloroso para tapas que seduzem à primeira mordida.
‘Salmorejo’ com toque de manga:
Não há pinchos ou acepipes expostos no pequeno balcão de apoio. A escolha é no menu para a degustação nas mesas de uma cozinha coerente e criativa, que funciona nos limites da tradição. Sem intenções revolucionárias, porém caprichosa e reveladora.
No almoço dos fins de semana, paellas perfeitas desfilam em sabores de terra e mar, além de pratos de conhecimento obrigatório como leitão assado com batatas campesinas, ‘migas del pastor’ e pimentão verde, e o bacalhau pil pil: o salão retangular e vigiado pela imensa silhueta de um touro é talvez o único lugar onde encontramos, em versão matadora, a secular receita basca.
‘Flamenquín’ de lombo suíno com jamón e cogumelos no vinho branco:
Ingredientes e Pessoas
Engajado entre os Ecochefs do Instituto Maniva, cultivando produtos e parâmetros de auto-sustentabilidade, Jan Santos é também um dos motores da Rede Gastromotiva, dando aulas e atuando na transformação social pela comida.
Ao ajudar na capacitação profissional de jovens de favelas e comunidades carentes, o chef vai ao encontro da própria formação, quando sua mãe o inscreveu, aos 14 anos, em projeto semelhante de Minas. Com sorriso largo e os olhos brilhando ao falar de seus planos e cardápios, tornou-se um transformador de ingredientes e pessoas.
Uma vez por ano, fruto de viagens sucessivas à Espanha, Jan e Antonio convidam um chef espanhol da nova geração para cozinhar na casa, em projeto que inclui atividades culturais no Instituto Cervantes.
‘Rabo de toro’:
No início de 2014, quando o Rio caminha para alcançar a vida adulta na cozinha, e nunca tantos e tão bons chefs dividiram nossa geografia, deixo aqui minha opinião: o Entretapas foi o acontecimento gastronômico mais importante dos últimos anos na cidade.
Muitos mais de vida a ele.