Sentimento do Brasil – Boca no Mundo
Home » Restaurantes » Sentimento do Brasil
13 de maio de 2014

Sentimento do Brasil

 

É verdade que minha relação com a jaca andava conturbada, cheia de altos e baixos. Do alto, por exemplo, veio aquela que certa vez encontrei no sofá do carro. Entrou pelo vidro traseiro e ali permaneceu, como se não fosse com ela (coisas do Rio).

Sempre tive certa dificuldade em comer este elefante no reino das frutas, embora me pegue às vezes entregue a seu perfume quando pinta um belo doce caseiro, ao lado de um queijo bonito.

Mole ou dura? Verde ou madura? Roberta Sudbrack foi de novo buscar nas árvores que ajudam a cidade a respirar a fruta de sua inspiração. E que mãos melhores haverá para demover (e comover) a todos que ensaiam caretas por simplesmente ouvir seu nome?

Picles de jaca verde, caqui, ovas:

Ao escolher a jaca, a cozinheira comprova de forma radical a evolução particular de sua cozinha, universo ultramoderno sobre o que há de essencial no cotidiano da alimentação no Brasil.

Me lembro da infância aos pés do morro, em Copacabana, quando a jaca despencava e a brincadeira era interrompida porque a criançada corria para se lambuzar na fruta espatifada.

Semente de jaca, consommé de galinha caipira:

A sensação de liberdade diante do presente inesperado da natureza é aquela que sentimos ao receber cada prato de Roberta — que encerrou a noite com uma grande jaca aberta para todos meterem a mão.

Num delírio de sonho, vejo a cozinheira, de jaleco branco e estetoscópio, diante da fruta depositada sobre a bancada do fogão, a escutar seu coração…

Outono

Com flores secas descendo pelo teto, e hortas de brotos no centro das mesas, a chef revelou neste início de maio talvez sua melhor coleção. Pratos de um equilíbrio absoluto entre sabores jamais pareados, na proposta de bordar dois ou três elementos no desenho de cada invenção.

Além da jaca, o caqui da estação se destacou como o arroz e o milho, com toques aqui ou acolá de ovas curadas na casa e raladas, vindas de recém-chegados como robalo e peixe boi.

Consommé de jaca, cenoura e tempura:

Tudo em soníferas ilhas cercadas de caldos límpidos e sutilmente perfumados a descansar os olhos, sossegar a boca e nos encher de luz.

A primeira acesa revelou quadro indispensável: o picles de jaca verde sobre a polpa rubra do caqui, ovas a pairar. Lâminas de textura firme porém macia, acidez reveladora de aromas e a doçura da fruta de outono.

Carne de sol, couve flor na brasa, chá de jaca fermentada:

Ao longo do percurso, a jaca veio também na forma do consommé, abrigando minicenouras macias e cobertas com delicada tempura de suas folhas. Ou sua semente em caldo de galinha caipira e ervas, se desmanchando na boca em sabor acastanhado.

O chá de jaca fermentada foi o acorde complexo escolhido para resolver um virtuoso baião de dois: a couve flor, viva ela, ‘queimada’ na brasa para concentrar sabor, beijando a carne de sol curada na casa e assada a cerca de 30ºC, imersa na manteiga, por 18 horas. Dengosa, desmanchou na colher.

Urucum

Os pratos recém-nascidos surgiam com seus ingredientes escritos no vidro da cozinha, sem maiores explicações, enquanto as taças recebiam os fantásticos Era dos Ventos, vinhos ‘de garagem’ feitos na Serra Gaúcha pelo enólogo Luís Henrique Zanini, da Vallontano. O tinto, merlot, e o comentado branco que resgata a uva peverella.

Se ganhasse a tarefa hercúlea de eleger a receita da noite, acho que ficaria com o triângulo amoroso entre burrata, pera e Lardo di Colonnata, castelo de lâminas transparentes num consommé de cebola (foto de abertura). Será possível dar a um prato o Prêmio Nobel?

Diafragma, inhame, aioli de urucum:

Pesando melhor, seria uma injustiça com o diafragma na brasa – que na parrilla argentina se chama entraña, corte divino —, com inhame em ponto ideal e um aioli de urucum inesquecível.

Atum, lardo, milho na brasa:

Sem falar no peixe-carne, pescado de anzol longe da costa, em caldo cremoso de arroz com amarga folha de mostarda a convidar papilas para a dança. Cutuquei depois Roberta pelo Twitter, que respondeu:

“É um peixe com pegada, rico, gorduroso, para mim parece carne e deve ser tratado como tal. Testamos mil possibilidades e quando o tratamos como carne ele agradeceu!”.

Peixe-carne, arroz, mostarda:

Do mar também chegaram a tempo da festa dois convidados impecáveis. O vermelho, com cebola assada e bouillon de jamón. E o atum, com lardo e milho na brasa.

As novas criações vêm após a reforma da cozinha que abriu espaço à parrilla presenteada pelo chef argentino Francis Mallmann. As brasas agora são aliadas, aprofundando o artesanato.

Canjaquinha

No prelúdio da parte doce, uma pequena colher chegou trazendo o possível grande achado da coleção, passo à frente de Roberta: a ‘Canjaquinha’. Servida com lâmina de queijo, é um creme celestial feito de jaca, e apenas ela, em processo natural de coagulação.

Para refrescar as bocas, o ‘Abacaqui’ veio com sorbet caseiro de abacaxi, polpa de caqui e quinoa macia. E meio morango apareceu banhado em mel no favo, amparado em cubinho de marshmallow.

Morango, favo, marshmallow:

E eu já pensava ter visto de tudo quando pequena joia quase me levou a nocaute: aninhada em creme de arroz com baunilha, uma fatia de tomate sutilmente caramelada.

Pela rede social do passarinho azul, a cozinheira me diz:

“Fazer por fazer, ou porque alguém fez, é fácil. Ouvir os ingredientes requer um exercício de humildade. Muitas vezes há que fazer algo tão simples, tão simples, que pode-se correr o risco de parecer simplista demais. Isso é sabedoria e humildade”.

Sorbet de abacaxi, caqui, quinoa:

O que a vida quer da gente é coragem, já dizia a pena do mestre Guimarães.

Roberta Sudbrack é Riobaldo, é Diadorim. O romance de um Brasil tão imenso que só sentindo.

PS. Todas as fotos do post são do Instagram da Roberta.




Nossa Casa

 

Se você não faz fotossíntese, veio ao lugar certo.

 

Boca no Mundo é o blog do jornalista Pedro Landim.

 

Um lugar para quem adora comer, beber, cozinhar, e falar de comida.

 

Sejam muito bem-vindos.