O mestre Daniel Lee da fumaça – Boca no Mundo
Home » Restaurantes » O mestre Daniel Lee da fumaça
23 de setembro de 2019

O mestre Daniel Lee da fumaça

Amar pela metade é chato e pode acabar em desilusão, muita gente já viveu o problema. A plenitude, por sua vez, move montanhas. De sabor, no caso. Pois foi assim, graças à busca apaixonada pelas peças que faltavam no quebra-cabeças do mapa bovino, que o paulista Daniel Lee atravessou cortinas de fumaça, visitou terras do norte e abriu caminho sem volta para a tórrida relação dos brasileiros com a carne e o fogo.

“Quando comecei a estudar maturação de carnes e churrasco, percebi que havia me apaixonado por um tema incompleto, porque só valorizava a parte traseira do boi, mais macia e de preparo rápido. Havia uma incoerência, e fui atrás de técnicas que pudessem dar valor ao dianteiro, de cortes mais duros devido à tração do animal. Foi quando caí no mundo da defumação e do american barbecue”.

A bem da verdade, se a onda de Daniel fossem as palestras de auto-ajuda, ele já estaria muito bem de vida. A prova está no celular, a cada vez que abre seu Instagram de 90 mil seguidores. “Recebo 300 mensagens por dia, e 60% delas são de pessoas que se dizem infelizes com a atual profissão e querem inspiração para mudar de vida com um pit smoker”, conta.

Não parece exagero creditar ao descendente de coreanos que vieram nos anos 1960, fugindo dos rescaldos da guerra, e ex-empresário do ramo têxtil que seguiu à risca o caminho dos sonhos, o protagonismo na revolução brasileira do churrasco americano.

Estamos falando de carnes como a costela e a sobrepaleta de porco, ou o peito bovino (brisket), que recebem misturas de temperos secos e assam de 6h a 18h em temperaturas próximas aos 120°C, expostas à fumaça constante de lenhas de árvores frutíferas como laranjeira e macieira, sem resinas tóxicas e com aromas privilegiados. O processo inclui uma longa etapa final com os cortes envolvidos em papel-alumínio para adquirir maciez e suculência.

“O que deixa as carnes do dianteiro duras é o colágeno, que precisa de líquido e calor para ser transformado em gelatina. É isso que nossas vovós sempre fizeram na panela de pressão”, diz.

Anel de Fumaça

Só não vá pensando que aquela costelinha que escorregou do osso no vídeo e garantiu recorde de likes na internet vai impressionar juízes de competição oficial. “Aparência, textura e sabor são os critérios de julgamento. É preciso ter o ‘bark’, aquela crostinha na superfície que é um tesão, e textura macia na mordida, mas sem desgrudar do osso. O ponto correto é decisivo”, afirma o pit master.

E cita a importância do ‘smoke ring’, ou anel de fumaça, de cor rosada e impresso na primeira camada de carne: “Não é páprica, como alguns acham, mas a reação da fuligem da fumaça com os aminoácidos da carne”.

As costelas, sejam suínas ou bovinas, são as partes preferidas de Daniel para o processo defumador consagrado nos EUA, com elogios também para a língua e a bochecha do boi. No churrasco tradicional brasileiro, na grelha e sobre a brasa de carvão, ele curte a fraldinha e a entranha, dois cortes de tecidos que protegem os órgãos internos da costela.

Dia desses, porém, a mágica ocorreu no filé mignon, esse trecho de carne que é vítima de bullying quando o assunto é churrasqueira. E encantou o narrador e gourmand Galvão Bueno, na casa de um amigo comum em Orlando, nos EUA. “Só tinha filé e o defumei por uma hora e meia, no ponto rosado, e depois fritei na banha de porco. Ficou incrível”.

Pitmasters Brasil

O número de adeptos do american barbecue no Brasil só faz crescer, e 2019 tem sido um marco para os pit masters. “Pela primeira vez, fomos convidados a levar uma equipe brasileira de dez integrantes para competir no Mundial de BBQ de Houston (EUA), um dos maiores eventos do planeta. Com mais de 200 equipes qualificadas do mundo inteiro, ficamos na metade da tabela e deixamos ótima impressão”.

Em dois anos de cursos mensais, Daniel já certificou mais de 3 mil pessoas com equipamentos próprios, e o calendário brasileiro de festas, eventos e competições envolvendo carne e fumaça ocupa atualmente 53 fins de semana, mais ou menos a metade de todos no ano.

Desde o início de sua jornada, em 2015, quando estudou na Flórida com o multicampeão de churrasco Rob Bagby, e tornou-se o primeiro brasileiro credenciado como juiz pela Kansas City Barbeque Society (KCBS) – a maior entidade de barbecue do mundo -, Lee criou a organização Pitmasters Brasil e trouxe as maiores feras do ramo para a formação dos atuais 73 juizes nacionais credenciados. Que tal?

Os vencedores do campeonato nacional de pitmasters que está em andamento, com etapas de norte a sul do país, se classificam para os mundiais dos EUA e da Austrália. A finalíssima está marcada para novembro, e levará a São Paulo seis diretores da KCBS, com a presença de Tuffy “The Professor” Stone, o churrasqueiro recordista mundial de títulos.

Nos concursos chancelados pela KCBS, assim como pela Pitmasters no Brasil, há quatro categorias: frango, costela suína, porco e brisket. A gigantesca sociedade do barbecue nos EUA nasceu em 1986, dez anos depois do pioneiro Memphis in May, espécie de Copa do Mundo do churrasco que é hoje um grande festival envolvendo música e esportes.

Há mais de 500 eventos por ano chancelados pela KCBS, que tem 20 mil membros cadastrados. As competições que começaram nos anos 70 como reuniões de amigos querendo se divertir e encher a cara, hoje são atrações que movem famílias inteiras pelo mapa americano para fins de semana de festa com grande sentido comunitário.

Escravos, Porcos e Guerra Civil

Cobras, peixes, jacarés e outros bichos suspensos em armações de galhos verdes sobre a fumaça da lenha queimando. Segundo anotações da época, foi o cenário ‘gastronômico’ que Cristóvão Colombo encontrou ao pisar no Caribe, em fins do século 15. Um processo de cocção e conservação de carnes batizado pelos índios taínos com palavra que soava engraçada aos conquistadores: “barbecue”.

Pois quem acabou conquistando para sempre o continente foi o tal churrasco sobre a lenha, marcando presença em celebrações, congraçamentos e momentos importantes como a Guerra Civil. Poderosas ferramentas políticas, as festas abertas de carne chegavam a reunir mais de 10 mil pessoas no século 19. Eventos, de certa forma, precursores dos encontros atuais.

No livro ‘Barbecue: the history of an american institution’, o autor Robert F. Moss transcreve o relato de um escravo das plantações de algodão. Os negros passavam o ano esperando a catarse de 4 de julho, um dia de folga em que os senhores patrocinavam imensa churrascada.

“Porcos inteiros eram assados sobre lenha e regados pelos escravos com gordura de porco, vinagre e pimenta”, diz o autor. “A mesma brasa assava, em fornos de ferro, trouxinhas de maçã com coberturas de açúcar mascavo e canela”.

Gordura, dulçor, acidez e picância: eis a base de sabor dos molhos e marinadas utilizados até hoje.

Texto publicado na revista Sabor.Club




Nossa Casa

 

Se você não faz fotossíntese, veio ao lugar certo.

 

Boca no Mundo é o blog do jornalista Pedro Landim.

 

Um lugar para quem adora comer, beber, cozinhar, e falar de comida.

 

Sejam muito bem-vindos.