Jessica Trindade, como uma onda no Chez Claude – Boca no Mundo
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16 de dezembro de 2019

Jessica Trindade, como uma onda no Chez Claude

Quando nosso chef francês mais famoso quebrou as paredes da cozinha no Chez Claude, formando uma arena gastronômica para quem curte comer observando o preparo dos pedidos, ela surgiu aos aplausos do respeitável público, dirigindo com talento a coreografia da equipe ao redor dos fogões. Lenço prendendo os cabelos louros e piercing no nariz, o jeito de menina do Rio não engana: quem veste o dólmã é uma cozinheira, surfista e budista que não teme grandes ondas e tarefas.

E o ‘darma’, no caso, vem da primeira infância, no contato precoce com as receitas que levaria para a vida. Estava escrito em alguma estrela que Jéssica Trindade, de 32 anos, seria a primeira mulher a trabalhar numa cozinha de Claude Troisgros, e chegaria ao comando do restaurante que leva o nome do patrão.

“Minhas memórias começam com o chef Claude. Tinha cinco anos e pedia para minha mãe descrever os pratos”, conta Jéssica. Como assim? “Ela contratava eventos para um banco francês e era ele quem cozinhava. Eu ficava acordada esperando ela voltar com as histórias”.

Para quem decidiu na adolescência que seria cozinheira, apesar dos narizes torcidos da família, era de se esperar a estreia luxuosa, aos 19 anos, como estagiária no antigo 66 Bistrô. Foi o início de uma trajetória de 11 anos que inclui período na Maison Troisgros, templo da família em Roanne, na França, e uma aventura digna de filme ao lado do ícone Paul Bocuse.

“Um dia o Michel me chamou e disse que teria que fazer sozinha algo para o almoço dos funcionários do hotel”, conta, referindo-se a Michel Troisgros, irmão de Claude e chef no três estrelas Michelin. O resultado foi um raríssimo registro de feijoada criada às margens do Loire:

“Fiz a farofa com pão de forma, defumei linguiça, improvisei a carne seca, e em vez da couve usei o chou, espécie de repolho. Ficou muito parecida com nossa feijoada e todos adoraram”.

Foie, Rã, Escargot

Não tem tempo ruim com a moça, a gente percebe no início da conversa no Chez Claude, um restaurante que homenageia e personifica em novas abordagens um repertório clássico e afetivo de Claude Troigros. Jessica ouve as ideias do chef e as leva para o fogão, com toques pessoais e receitas próprias de aparição mais comum entre os pratos do dia, que não demoram a acabar.

Como a paleta de cordeiro confitada na manteiga com quiabo e cuscuz marroquino. Ou um joelho de porco defumado e desossado, cozido em caldo e confitado, servido na panelinha de ferro fumegante com polenta e agrião. E sabem o que ela diz que mais gosta de cozinhar e comer?
“Foie gras, rã, escargot, essas coisas”. A pegada francesa encanta, e Claude jé disse uma vez que o boeuf bourguignon da Jessica é melhor que o dele.

Recentemente, os dois apresentaram no Chez Claude uma receita que veio após a viagem iluminada de Jessica e um grupo de chefs, para conhecer a pesca de manejo do pirarucu no Amazonas, com os indíos Paumari. Serviram o peixe com abacaxi, crosta de castanha do Pará e beurre blanc de tucupi.

Surfe que Alimenta

O contato com a natureza através das águas é intenso, e contraponto necessário à energia e concentração na cozinha. O surfe é frequente nas ondas encorpadas do Recreio dos Bandeirantes, onde mora, na Zona Leste do Rio.

“O surfe tem tudo a ver com uma cozinha que alimenta a alma e o corpo. Preciso desse contato com a natureza, da reposição de energias. Tenho o restaurante e duas filhas pequenas”, afirma.

Em cerimônia budista na areia da praia, Jessica se casou com Carlos Yusa, hoje chef do Olympe, braço direito de Thomas Troisgros, que ela conheceu quando o contratou para a CT Boucherie. Mais coincidências: “Conheci ele na cozinha e descobri que morava na minha rua da vida inteira”. Os dois costumam pegar onda juntos e se revezam no fogão de casa, caprichosos com o que escolhem nas feiras.

“O que mais gosto na folga é de abrir um vinho e cozinhar com liberdade, no meu tempo”, diz Jessica, que colhe ervas e temperos em sua pequena horta.

Presentes especiais são sempre bem tratados, como um palmito plantado pelo saudoso José Hugo Celidônio no sítio, levado a ela no restaurante por Marialice, companheira de vida do cozinheiro falecido há um ano, nome importante na construção da gastronomia carioca, nos anos 80. “Fiz uma moqueca gigante de pupunha em casa”, diz.

Da coleção completa e encadernada das receitas que Celidônio publicava no jornal, Jessica chegou à faculdade de gastronomia na Estácio de Sá, onde se formou. Fez um curso da fundação Alain Ducasse e trabalhou no Hotel Transamérica, onde conheceu um ex-cozinheiro de Claude e fez contato com o ídolo francês. “Sou persistente, não desisto”, afirma.

E nos conduz em degustação com delícias do Chez Claude como Ovo & Caviar Clarisse, as Vieiras com Doce de Leite (e espaguete de pupunha), o Cherne com Banana, e o Pato Laqueado com Laranja e Risoni que é um magret sobre a massa em formato de arroz, no molho intenso com kimchi, laranja fresca e raspas confitadas, bacon, macadâmias e manjericão.

Pijama com Bocuse

A realização do sonho de conhecer o chef Paul Bocuse, enquanto estava com os Troisgros na França, rendeu a Jessica uma das passagens mais emocionantes da vida. Detalhe: de pijama.

Depois de um karaokê com os cozinheiros, perdeu a hora de acordar para o trem entre Roanne e Lyon. Jogou por cima do pijama o sobretudo e saiu correndo. Descobriu um ônibus e, ao fim da maratona, chegou no restaurante às 15h. Bocuse, que ficara lhe esperando, havia saído.

“Não havia mesas para o jantar, mas fiz de tudo e me disseram que o único jeito seria eu me sentar na cozinha, se não me incomodasse”, conta Jessica.

Nesse momento da entrevista, seus os olhos se enchem d’água. “Atravessei um bosque e esperei sentada na cama de uma pensão até de noite”. E na hora de tirar o sobretudo? “Todos queriam pendurar, não entendiam, ficavam me olhando, acabei dizendo que estava de pijama”. E assim ocorreu o jantar mágico.

“Fiquei na cozinha vendo o serviço todo acontecer, os caras fazendo a mise en place, aquelas panelas de cobre, eles recheando o frango com trufas, não dá para esquecer. Bocuse sentou, conversou e bebeu vinho comigo”.

Texto publicado na revista Sabor.Club




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