Sonhei que estava bebendo
Compartilhe:
- Tweet
A linha em branco acima resume o estado de espírito após o primeiro gole no primeiro néctar, e dali para sempre: sem palavras.
Basta imaginar que, quando alguns dos vinhos degustados naquela noite de quinta-feira foram feitos, o telefone ainda não havia sido inventado para se dar qualquer notícia.
No Brasil, a Proclamação da República era um sonho distante, e Charle Darwin andava às voltas com a publicação de A Origem das Espécies.
A estátua O Pensador, de Rodin, era apenas um bloco de bronze à espera do escultor.
Em cores do cobre ao âmbar e castanho, com etéreos círculos amarelos e esverdeados nas bordas do líquido, estavam nas taças os melhores vinhos portugueses fortificados do mundo, em safras variando entre os anos de 1834 e 1955.
Falamos de Porto, Madeira e Moscatel de Setúbal. Ou melhor, falamos de fenômenos que ninguém pode explicar direito, ocorridos em barricas e garrafas ao longo de gerações.
Com as ‘cuspideiras’ posicionadas nas mesas de degustação, artefatos adequados aos longos eventos alcoólicos, um aviso bem-humorado do especialista português Rui Falcão, que apresentou divinamente a sagrada coleção: “Quem cuspir vai pagar multa”. Não havia loucos.
No Centro de Convenções Sul América, na região carioca da Cidade Nova, a prova Vinhos Portugueses de Sonho abriu com chave de ouro o evento Essência do Vinho, e foi um tal de se beliscar para saber se era mesmo verdade…
Às garrafas
Tudo começou com o Trilogia, de José Maria da Fonseca, um Moscatel que reunia caldos de algumas das melhores safras da história do vinho: 1900, 1934 e 1965.
Antes do primeiro gole, Rui lembrou algo em comum aos vinhos moscateis no mundo: são ruins. ‘Chatos’ na doçura, merecem vindima antecipada, com uvas menos maduras para conferir a desejada acidez.
Após um ataque impressionante que arregalou os olhos, fiquei viajando. Vieram passas, ervas e certo mentolado. Casca de laranja e algum chá. Rui falou em mel, figo seco e café.
Depois veio o JMF 1955, do mesmo produtor, que se refere à melhor safra de todos os tempos. Seu nascimento mostra que nem todas as notícias eram ruins no ano em que começou a Guerra do Vietnã.
Nas taças, o resultado de apenas uma colheita, com tiragem de 300 meias garrafas. Foi o que não evaporou de uma única barrica. Quase tudo foi vendido em leilão, e logo depois o vinho ganhou nada menos do que 100 pontos de Robert Parker e da Wine Spectator.
As ampolas passaram a valer pelo menos o dobro. As garrafas que vieram ao Rio eram da reserva da família.
Concentração, gordura e acidez brutal, conforme definiu nosso comandante, formaram conjunto irresistível, quase oposto ao que se espera de um Moscatel de Setúbal. Rui lembrou de pimenta preta, canela, figo e marmelada. Deixei um resto na taça e, ao final da degustação, senti balas de mel e limão.
“Se quiser usar como perfume, um dedinho na orelha, fica até amanhã”, disse o português.
Pensei no estrago que não faria naquele momento uma boa torta de damasco, ou frutas secas…
Nosso terceiro foi o Porto Andresen 1910, colheita apenas do ano indicado. Era um Tawny, com muitos anos de descanso em barricas de madeira. Recebeu dos grandes degustadores portugueses a nota 100, considerado um vinho perfeito.
Em primeio lugar, taninos impressionantes para um vinho de 113 anos, com chocolates e amêndoas substituindo o figo e o mel do anterior. Notas sutis de torrefação.
Dessa vez, fiquei pensando numa taça do vinho em cabana no meio do mato, à frente da lareira… Uma provável experiência alucinógena à base de uvas.
Então foi a vez do Porto VV, de 1863. A sigla do nome significa, simplesmente, Vinho Velho. E nunca antes na história desse país foi tão válida a ideia de que o vinho melhora com o tempo.
O líquido permaneceu nas barricas até 1972 e depois foi para garrafões de vidro. Detalhe, na opinião de Rui: “Está ainda fechado, é cedo para beber”.
O silêncio na sala, acreditem, foi de concordância.
Senti algo silvestre, floral. O que se revelou, nas palavras do profissional, limão siciliano e curry. E caramelo no final.
O quinto exemplar foi o Madeira Pereira d’Oliveira Verdelho 1850. Obra de dois irmãos que produzem no máximo 2 mil litros de vinho por ano, de forma rústica, deixando com o tempo a tarefa de dar acabamento ao líquido.
Um vinho de muita especiaria, curry e cravo, permanecendo a acidez impressionante, secando a boca apesar da imensa quantidade de açúcar. Assombroso, eu diria.
O bom Madeira, conforme aprendemos, devido a seu processo de produção que inclui um ‘cozimento’ a cerca de 50ºC, é um vinho eterno. Dura enquanto durar o mundo. A garrafa aberta, no caso, aguentaria mais uns 60 anos. Tais vinhos, inclusive, precisam ser guardados de pé, pois a acidez destrói as rolhas.
E o fecho dourado veio com o Madeira Barbeito 1834. Existiam duas garrafas deste elixir das uvas malvasia no mundo, bebemos uma delas.
Um vinho de quase dois séculos que concentra seus sabores em vez de enfraquecer com o tempo. A potência dos primeiros aromas quase deixa tonto quem com muito nariz vai à taça.
Café, torrada, bolo de mel, passas e canela estavam entre as descobertas na garrafa. Um lanche completo, convenhamos.
Piadas à parte, são vinhos que resistem ao homem. Nós passamos, eles ficam.
Deixei a sala no Centro de Convenções, peguei um táxi, cheguei com sede em casa e enchi um copo grande com o mate caseiro que sempre está na geladeira. Bebi, entrei no chuveiro, me arrumei e saí para um jantar.
Pois entrei no restaurante com sobra dos vinhos na boca, não estou exagerando. Como se estivessem compensando as muitas décadas aprisionados.
Se um gênio saísse de alguma das garrafas geniais me oferecendo um pedido, eu pediria outra garrafa, de bate-pronto.
Clique para a incrível degustação de nove safras do Almaviva.