Saison Pissenlit: orquestra na montanha
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Viva papai! Era assim que a gente exclamava, em tradição familiar, a cada sopro infantil na esfera branca que se transformava em nuvem de pequenas sementes ao sabor do vento.
Sabor, por sinal, é difícil imaginar para quem avista, espalhados pelos canteiros e matos, como erva daninha, as flores e folhas do dente de leão. Quem conhece a planta, no entanto, exalta relevantes propriedades medicinais e também culinárias, constata-se em breve pesquisa.
Entendido na fitoterapia como desintoxicante e efetivo em relação a problemas envolvendo o fígado (tô dentro), o dente de leão adorna com sabor de acento amargo receitas diversas em apresentações distintas de suas folhas e flores.
O nome vem das folhas ‘dentadas’, me informa o oráculo Neide Rigo. Na França, aparece em feiras que anunciam na gôndola: Pissenlit. O mesmo ocorre no rótulo amarelo da edição sazonal da Saison Fantome, uma cerveja que destaca o dente de leão entre as ervas e especiarias historicamente utilizadas na fabricação do sedutor estilo belga.
Detalhe: ‘pissenlit’ significa, literalmente, fazer xixi na cama, singela homenagem às propriedades diuréticas da planta – e das cervejas, por que não?
Na pequena cervejaria artesanal de Soy, no sul da Bélgica, as flores amarelas – que representam o estágio anterior às bolinhas sopráveis – são colhidas nas imediações da propriedade e secas ao sol, antes da infusão na fabricação da cerveja.
Piquenique
A beleza começou na bela coloração dourada, alaranjada e de ligeira turbidez que tingiu a tarde do dia 31 de dezembro na montanha. Complexa e deliciosa, no sedutor paradoxo das ‘farmhouse ales’, a Pissenlit desceu pedindo goles fartos. Convidando, porém, à reflexão em momentos de pausa para a boca e o nariz.
Me admirei, de fato, pela velocidade com que sequei a garrafa de 750ml, no calor da churrasqueira a pleno vapor, indiferente aos 8% de álcool que sustentam o piquenique aromático.
Há um avanço frutado que lembrou nectarina, ou marmelo, e o transbordar de especiarias e ervas frescas: menta, manjericão, pimenta em grão esmagada. Quem sabe um toque de mel no caldo vivo e bem carbonatado, de final seco e persistente de fruta amarga.
Orquestra
Nunca se sabe exatamente o que há nas receitas secretas das saisons, tão intenso e gracioso é o trabalho das leveduras belgas do estilo que criam camadas de frutas e condimentos onde às vezes existe apenas malte e lúpulo. Quando novos ingredientes entram na dança, a orquestra está formada.
Para ser sincero, colocando um pouquinho de lenha na lareira do Réveillon que passei com a garrafa, acredito que uma saison do naipe da Pissenlit finalize por nocaute uma champagne como a Veuve Cliquot, por exemplo. Custando três vezes menos.
Sim, são bebidas diferentes. Mas cabe a comparação, levando em consideração a complexidade e o deleite sensorial oferecidos por duas bebidas fermentadas alcoólicas e carbonatadas (a segunda fermentação na garrafa), de alta qualidade em processos seculares de produção, acondicionadas em recipientes idênticos e fechados com rolha de cortiça.
Feliz 2018.