No Bonde do Becoza
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Calça de tergal, camisa social e chapéu Panamá, Seu Jairo amarra cachos de banana verde e canas de açúcar no fusca azul, saldo de passeio pelas estradas de terra da região até a praça, onde senta para um tira-gosto.
Na mesa ao lado, o explorador e colunista de botecos Juarez Becoza, celebridade etílica que escreve para O Globo e vive para a jaca, comanda a tropa e solicita à pastora Marly de Fátima:
“Vamos na porção grande de bolas de aipim com carne seca”. A religião da proprietária não permite bebidas na geladeira, mas o bar vizinho fornece ampolas, para alívio dos passageiros.
Está na pista mais uma edição do Bonde do Becoza, programão carioca que caiu na Via Dutra, acionou o GPS e estacionou no pé da Serra do Tinguá, área rural de Nova Iguaçu. Na Baixada bucólica, apresentou à turma um boteco evangélico chamado Escorpion’s. Oi?
A atração local está desenhada na parede: bolinhos de puro aipim da região, cobertos com queijo ralado e afogados em carne seca acebolada. “De se comer ajoelhado no milho”, define Juarez.
O pessoal mastiga, e Marly explica: era roqueira quando batizou o bar, há 20 anos, antes da conversão ao Ministério do Milagre da Assembleia de Deus. Hoje comanda os cultos na vizinhança.
“Eu fui ao primeiro Rock in Rio com roupas pretas de bandas, que comprei na Mesbla”, recorda. E traz o molho de pimenta. Vida que segue sobre as quatro rodas da caravana.
Bigode na Brasa
Cara inchada de felicidade ao liderar nova ‘entourage’ entre botequins de alma inspiradora, Juarez Becoza mantém a identidade secreta em suas redes sociais aparecendo nas fotos com máscaras de heróis como Super-Homem e Homem-Aranha.
“Não que eu seja tímido, mas é legal não ser reconhecido e circular livremente pelos bares”, diz.
E abre as portas da van à frente da casa com varanda que à noite também se transforma. Jorge Alves, o Bigode, vira Le Moustache, boteco inigualável no centro iguaçuano.
De um lado mora o piano, que já recebeu violino e trombone em performances reunindo os melhores músicos da praça. De outro, um braseiro que produz galetos bem temperados, contrafilés suculentos e um pão de alho no ponto.
Entre santos, anjos e pinturas, grande máscara reproduz na parede o rosto do anfitrião, cigarro no canto da boca. Na televisão ligada ao YouTube, Elis Regina arrebenta: “Alô, alô, Marciano…”. O Bar do Bigode é de outro mundo.
Pixinguinha com Bacalhau
E o bonde segue com direito a água mineral na cabine e latinhas para casos de engarrafamento. Becoza costuma traçar quatro bares em cada sábado, a faz parada quase obrigatórias na esquina suburbana de Ramos onde a portuguesa Donzília Gomes comanda as panelas. Com sombra de amendoeira e passarinho na gaiola, ergue-se o Bar da Portuguesa.
Quem vestir chapéu que o tire no botequim que foi segunda residência do gênio Pixinguinha, morador de pequena travessa que hoje leva seu nome, a alguns passos do balcão. O músico ali bebia de pijama, como prova fotografia histórica na parede.
“É para mim o lugar que melhor exprime o espírito do botequim de subúrbio carioca. Fosse só o ambiente já valeria a pena, mas ainda vem com o talento cozinheiro da dona”, comenta Juarez.
No fim dos anos 60, Pixinguinha e Baden Powell dividiram mesa do bar para o documentário Saravah, do francês Pierre Barouh, com garrafas de cervejas Sul Americana e Black Princess na mesa, e um tira-gosto desfocado no negativo. “Naquela época só tinha tremoço”, diz Donzília.
As clássicas leguminosas em conserva ainda estão por lá, mas o cardápio ganhou barbatanas. Juarez, que de bobo não tem nada, manda descer sardinha frita. E convoca o bacalhau.
Seja em forma de bolinho, punheta (a entrada portuguesa com o peixe cru), na fritada do Seu Hélio (homenagem a antigo frequentador), ou na salada de feijão fradinho que adeus Antiquarius.
Aviso aos navegantes: no domingo a casa apresenta um torresmo de barriga que merecia um outro documentário.
Redentor do Cachambi
Partiu Zona Norte. Contemplando a linha do trem, na rota do Cachambi, nosso herói mascarado respira fundo e profetiza: “Vai ter um dia em que ser carioca e nunca ter ido ao Cachambeer será tão grave quanto ser carioca e nunca ter ido ao Corcovado. A costela de boi no bafo é uma instituição da cidade”.
Os cortes com osso de boi ou porco são marinados em misturas de vinho (ou cerveja) e ervas, fechados em sacos de poliéster e assados durante horas em churrasqueiras fechadas na calçada.
Marcelo, o dono, está sempre por ali com caneca nevada de chope nas mãos. É adepto da teoria de que onde se ganha a vida se bebe, e muito. Reza a lenda, comprou o bar após uma noite de chopes, quando o ex-dono quis baixar as portas.
Outro dia, Juarez liderou um grupo de amigas do spinning do Jockey Club, comemoração de aniversário de 50 anos, e as jovens senhoras da Zona Sul se entregaram com força às costelas do distinto cozinheiro Pança. Com direito a bandeja de caipirinhas na porta da van.
Os pastéis da casa são acessórios indispensáveis, e podem ser definidos como porções de camarão com massa em volta. “Se quiser creminho, nem pede”, avisa Marcelo.
E o que mais podemos falar sobre a tábua chamada Infarto Completo? Tem carne seca, torresmo, coração de galinha, aipim frito, alcatra de sol, linguiça calabresa, farofa e manteiga de garrafa.
“A pessoa sai toda estragada mas feliz”, explica o dono.
Entre no Bonde
O leitor interessado em participar do Bonde do Becoza pode entrar em contato com o cara pelos telefones 99375-7580 e 3177-1068. Ou lá na página dele no Facebook.
No momento, Juarez está empenhado em valorosa iniciativa beneficente para salvar, através do crowdfunding, o jornal e humor e boteco Biricotico, que circula gratuitamente há dois anos em 50 bares cariocas.
A campanha #SalveOBirico está no ar, e oferece divertidas contrapartidas para quem quiser ajudar a manter vivo um patrimônio da boemia. Inclusive, algumas vagas no Bonde do Becoza.
Pinta lá para saber mais e participar.
O espírito é aquele consagrado na marchinha da Turma do Funil: todo mundo bebe, mas ninguém dorme no ponto.